19.3.12

País de mim




O peso da vida!
Gostava de senti-lo à tua maneira
e ouvi-la crescer dentro de mim,
em carne viva,

não queria somente
rasgar-te a ferida,
não queria apenas esta vocação paciente
do lavrador,
mas, também, a da terra
e que é a tua


Assume o amor como um ofício
onde tens que te esmerar,

repete-o até à perfeição,
repete-o quantas vezes for preciso
até dentro dele tudo durar
e ter sentido

Deixa nele crescer o sol
até tarde,
deixa-o ser a asa da imaginação,
a casa da concórdia,

só nunca deixes que sobre
para não ser memória.
[IsabelMartins1.jpg]
Isabel Martins - artista moçambicana

Eduardo WHITE - «corpus» seleccionado pelos alunos





Excerto da obra:
A Janela para o Oriente,
de Eduardo White

“Nas Filipinas uma lava destila o açúcar e eu bebo, em Manila, uma mestiça que me seduz, vulcânica na sua orientalidade, desde a raiz que lhe vem dos igorots, a falar de amor em tagalo, até à lembrança de Fernando Magalhães curvado sobre Mindanao, mais obscuro ainda nel corazon de su glória, orbital na azul fugacidade dos mares porque em Quezon se incandesce o canhâmo que ali chegou anelante e líquido pelas portas do sexo, o fulgor da copra amendoada e concava, viscosa para sangrar o sabão que o há-de lavar. E tudo isto eu digo a caminho da fertilidade tropical de Terai, no Nepal, e do frio altíssimo dos Himalaias onde um bovino se ri auto-móvel pelo gelo, a pensar, quem sabe, nas tranças de tabaco que seria bem melhor transportar pelas ruas diurnas de Kat-mandu, ou de Biratuagar, ou Lalipur, ou em amarrar-se, mais longe, ao puro sizal da utopia de Corazon Aquino num comício eleitoral nos subúrbios de Devao, meu oriente de quem este chão foi a ponte com o Ocidente e que ainda a vejo e atravesso do quarto da escrita, tu que eu olho sem que ninguém saiba e oiço como o bantu idioma do meu povo no Suriname a roubar ao mar a terra com a força punjante de um negro a gritar em takl-takl todas as mães que deixou, todos os filhos que não amou, tu denso e vegetal no barbudo caçador de tigres da Malásla, esbelto e escuro na flecha adunca do seu nariz, nos longos e azevichados cabelos a voarem de paixão por uma branca a passear-se em Johor Baru, tu mãe do bumuputra Sandokan na solidão do seu sabre, costureira, por ironia, da alta moda de Paris e a passear-se, com loiras e paneleiros trajados de caqui, no dorso medieval de um elefante e a despir-se ao ritmo dos tambores taoístas e das mil e tais posições do Kamasutra, meu Oriente dos belos e impagáveis travestis em pleno Laos, a beber Coca-Cola da boca amarga dos marinheiros, a dar o cú mais feminino de Venciane, duro e redondo como não existe em Las Vegas, virginal ainda do pouco uso ou da idade recente no negócio, meu Oriente nos haréns de Bandar Seri Bangwar, na dança do ventre do próprio sultão a rir-se de tudo e a coçar os pés altivo e imperial no lustríssimo turbante, nas opalas gigantes dos dedos, ou ainda do velho obeso e cansado Vasco da Gama, em Molucas, português de fé como minha mãe, deixa que cheguem a esta janela, pelas tuas canoas com balancias e velas, os melões vermelhos da Malásia, a borracha de Sumatra, o amendoim da Birmânla, o cacau de Luzon nas Filipinas, deixa aqui fumar um cigarro enrolado a dedo em Java e uma dançarina de Bangkok para que durma.
Mas antes, deixo o Saigão numa jangada, com docinhos de arroz, a banana frita e um pouco de peixe salgado na cozedura para a viagem, deixo o Salgão com alguma tristeza e o meu mulato, lá, gonorreico a chorar num reclame da Cruz Vermelha, vou para Boston sem uma perna, pedrado da vida, perdi-a a matar em nome do velho branco de fraque e cartola e a ler Ginsberg fodido por lhe terem tirado tudo sem nunca ter recebido nada. Saigão venérico de Napalm nas canções de Lenon, a pôr bombas na casa real inglesa e a dizer-se maior que Cristo e a masturbar-se de óculos com o Japão em Yoko, meu Saigão inderrotável até nas papaeiras da Marilyn Monroe, vermelha de dormir com a América toda ou de cheirá-la por um tubo branco a redimir-se sozinha do velho sangue preto de Martin Luther King, Saigão da vergonha, terrorista, da malária a gingar no mosquítico mindinho comunista de Ho Chi Min, invisível, maquiavélica por Maquiavel não ter culpa disso, Maoísta até ver quando, Saigão das bananas a descascar o mundo e a vomitá-lo todo na Broadway, a dançar sapateado com o conformado Fred Astair, nas loiras adolescentes de Nova Iorque brilhantinosamente estéricas com a pilinha de ouro do Frank Sinatra ou na volumosa mandioca do Jimmy Hendrix a tocar com os dentes o hino nacional americano, Saigão doente e triste, mas de pé em Phnom Penh e nas rotas botas do cidadão Giap, oriental em tudo e místico e forte, vejo-te daqui e não sabes, com um barco pronto a meio do peito e as malas por arrumar na consciência.”







 PROSA POÉTICA

“Vou mostrar-vos de outra maneira toda a substância desta mania. Um pássaro bebe nu na minha boca e em vão vai querer saber que álcool o comove com tanta frescura. Primeiro pia, limpa as asas robusta ainda húmidas da saliva e depois canta e ferve e sua, e num minuto já todo o corpo lhe estrebucha. Chama por mim. São muito velozes e bruscas as suas tonturas e eu face a isso pergunto-vos por que terá vindo nu um pássaro a beber à minha boca? Que esplendor ou embriaguez ele procura? Que obscuros dons, que vocação, que loucura?
Vamos, entremos agora no mistério onde o poema nos vigia, rente ao murmúrio para que a alegria não retina e podem ver ao fundo, ali, um estábulo onde as palavras se abrigam, acolá, um bebedouro onde a memória bebe, os restos de feno, dois tipos que trabalham em pleno escuro e já visível a farma, a terra em uso. Estão aqui os instrumentos, os moldes da mania de que vos falei há bocado.
Voemos.
Voar não é senão essa ilusão,
Fazê-la possível. Tê-la vivendo.
Voar é estender as mãos
a esse desejo que nos dói
como um punhal insurgente.”

(p. 26)




Poemas da ciência de voar

Uma mão relampeja na casa da escrita.
Faísca Troveja.
Procura um claro instante para a aparição.

Pode-se vê-la correr pelo dorso do papel,
deitada do seu lado ou do seu modo rastejante,
pode-se vê-la provando o ruminante delírio das palavras,
a sua rasante arrumação,
e leva vozes aquela mão em cada delicada passagem,
rítmica, latejante
ou um nervo animal que faz lembrar
a textura pedestre do papel.
Mas a mão voa, explosiva,
e não cai nem agoniza no espaço vibrante onde se comunica.

Voar é um fervoroso recolhimento.
E no que é quase a medida elementar do esquecimento
a escrita navega
num estuário de silêncio.
Escrever é uma droga antiga,
uma bebedeira que queima com lentidão
a cabeça,
traz as luzes desde as vísceras,
o sangue a ferver nas vias tubulantes,
traz a natureza estimulante das paisagens
que temos dentro."
...
Ocorre-me agora
a pupila minúscula de uma criança.
A sua engenharia
desde o corpo na guerreira pequenez
ao dedo provador da boca.
Ocorre-me esta criança
este monge da franqueza em seu templo de inocência.
Amo-a. Vivo-a.

Voar é poder amar uma criança.
Sonhar-lhe o peso no colo, as mãos acariciantes
sobre a palma da alma.

Voar é tardar a boca
na rosa do rosto de uma criança.
Pronunciar-lhe a ternura,
a seda fresca e pura
da sua infância.

Voar é adormecer o homem
na mão sonhadora
de uma criança.


E se o procurarmos? Que não se desespere, pois nunca o iremos encontrar. Algum sentimento o terá deixado pousar, partido com ele. Estará o verso conosco? Provavelmente apenas a parte que nos coube. Aquietemo-nos. Amainemos esse desejo de o prendermos.

Não é justo um pássaro
onde ele não pode voar
(p.244)
O corpo e o chão em Eduardo White
«Lembro-te: alguém no amor precisa de estar nu para mostrar ao outro que está demasiado vestido.». Assim abre e fecha o pequeno, mas irascível novo livro de poesia do moçambicano Eduardo White. Com o título sonoro e desconcertante «Dos Limões Amarelos do Falo às Laranjas Vermelhas da Vulva», o autor executa uma odisseia pelas pulsões primárias do corpo e do desejo: em rajadas de linguagem, em alucinações verbais despidas de qualquer pudor, penetra o corpo da mulher africana de cheiro forte, chão da África real e utópica. São ácidos estes limões, que se acoitam e desamparam nas dulcíssimas laranjas sanguinolentas; é, sobretudo, uma poética de extrema solidão tecida com um método dramático, repleta de raiva e desespero, ou não fosse o amor matéria incerta e fugidia, pleno de exaltação e de dúvidas, de sonho, ilusão e perda. É, realmente, de nudez que aqui se fala: a nudez das intrigas que o desejo tece contra si próprio; a nudez de todas as sensações e todos os frémitos; a nudez dos sonhos e das realidades; a nudez que nos faz sentir, incomodamente, demasiado vestidos. Nascido em Quelimane (Moçambique) a 21 de Novembro de 1963, Eduardo Costley White tem colaboração na imprensa lusófona e tem publicados, entre outros títulos, “Amar sobre o Índico” (1984), “País de Mim” (1990), “Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave” (1992), “Dormir com Deus e um Navio na Língua” (2001), “As Falas do Escorpião” (2002), “O Manual das Mãos” (2004). Já arrecadou vários prémios literários e foi considerado em 2001, em Moçambique, a Figura Literária do Ano. Com uma poética atada ao chão do seu país, configurada com densidade amorosa e pujante erotismo que dão conta da «humana meteorologia», White foi classificado por Mia Couto como um poeta que «vive com o coração», que sempre «escreveu para dar a ver.». Trata-se de um compromisso entre o amor e a escrita explicado assim por White: «faço amor contigo como escrevo e só escrevo em plena liberdade e ouvindo os rumores, os arfares, os gritos, os rumores que implicam profundamente essa palavra». Com efeito, se em White, «cada palavra, cada metáfora e cada imagem criam tremores de sentidos», como diz Carmen Lucia Secco, em «Dos Limões Amarelos do Falo às Laranjas Vermelhas da Vulva» apresenta-se o gesto vertiginoso do corpo do amante, em idas e vindas, que se agita, encontra e esgota no corpo da amada. E a palavra – que nos faz «voyeurs, escondidos nas páginas», como bem refere Reinaldo Ribeiro, no Prefácio – lá está a dizer as «causas profundas da sede», crua, terna, incómoda e, provavelmente para muitos, chocante. Atesta-se a impulsão do desejo, o beijo, «anel linguisticamente molhado, regado por dentro do macio apaladado das papilas, da dormência dos lábios», o beijo com o qual «pode o falo levantar-se, devagarmente arguto como um embrião a espreguiçar-se» e a «missão de suborno pelas ruas» do corpo da amada, que é também uma incursão pela Pátria; neste sentido, White cria um objecto verbal pleno de elasticidade que atende às tensões, angústias e cicatrizes de um povo, e que lhe serve de grito: Estou louco, mascarado no nu doido que sou aqui, lambendo-te, poro a poro, pêlo a pêlo, como um faminto indigente; Cheirar-te desde as vísceras, o cheiro forte da mulher que és quanto mais te entro, alongado, viscoso como um molusco, a apalpar-te metro a metro, tecido a tecido, e a chamar-te nomes que são feios mas que aqui levam o milagre de serem belos e acariciantes; Este país é tão parecido contigo, (…) E as badjicas, meu amor, as badjicas amarelecidas de tempero naquele pão fortíssimo para cimentar o vácuo do estômago, a fome que de nós se não afasta, se mantém viva, nefastamente teimosa no partilhar o já pouco que cobre as nossas mesas. Meu país suburbano e só urbanizável no amor. Para Reinaldo Ribeiro, este livro impressiona pela «crueza do desespero a que o poeta se abandona, e da sua impotência perante a imprevisibilidade do Amor.». Cartografando o amor, depois do êxtase no corpo amado há o frio da cicuta, a perda, que não é mais do que a perda primitiva, a que já estava no momento do êxtase: «Pergunto-me: que batalha foi esta tão esmagadora, arrasante de calafrios»; «Chega-me um certo cansaço, um Inverno aberto à insónia e ao crime. Amor, talvez não sintas esse cheiro a medo, este suor peganhento agarrado aos lençóis, este odor a enxofre.». No combate contra essa morte, está, pois, a escrita, câmara de ecos universais, projecto assumido claramente pelo autor: O amor, reparo, sangra como um aparo lento nas palavras, apagadas, tolhidas, incertas, ruídas, cercadas e assustadas. Custa-me tanto acreditar no que vejo, nestes escombros ácidos, nestes estilhaços tatuados nas paredes. O ar é pesado e envelhecido, é como um cais mórbido e paralisado, é como se babasse mapas rasgados, bússolas vomitadas, cadáveres enlouquecidos; (…) Então, por essa razão, te escrevo não com o fim de que morras mas que vivas eterna para mim, e escrevo-te em esperanto, mandarim, árabe, grego e em outras línguas que não sei desenhar pelo papiro delicado do teu corpo e faço-te tecido e sedas caras com os cabelos que sinto trespassarem-me a carne com maciez e alguidares de barro com argila perfumada e incensos de acácia e madressilvas e cidras que vou espremendo para a minha língua como um peregrino perdido que encontrou a fonte e a frescura da água e o repouso da sombra. Dos Limões Amarelos do Falo às Laranjas Vermelhas da Vulva, Eduardo White; Editorial Campo das Letras, Porto, Junho 2008 © Teresa Sá Couto




Não faz mal.

Voar é uma dádiva da poesia.
Um verso arde na brancura aérea do papel,
toma balanço,
não resiste.

Solta-se-lhe
o animal alado.
Voa sobre as casas,
sobre as ruas,
sobre os homens que passam,
procura um pássaro
para acasalar.

Sílaba a sílaba
o verso voa.

E se o procurarmos? Que não se desespere, pois nunca o iremos encontrar. Algum sentimento o terá deixado pousar, partido com ele. Estará o verso connosco? Provavelmente apenas a parte que nos coube. Aquietemo-nos. Amainemo-nos esse desejo de o prendermos.

Não é justo um pássaro
onde ele não pode voar.

(p. 22)



Vou mostrar-vos de outra maneira toda a substância desta mania. Um pássaro bebe nu na minha boca e em vão vai querer saber que álcool o comove com tanta frescura. Primeiro pia, limpa as asas robusta ainda húmidas da saliva e depois canta e ferve e sua, e num minuto já todo o corpo lhe estrebucha. Chama por mim. São muito velozes e bruscas as suas tonturas e eu face a isso pergunto-vos por que terá vindo nu um pássaro a beber à minha boca? Que esplendor ou embriaguez ele procura? Que obscuros dons, que vocação, que loucura?
Vamos, entremos agora no mistério onde o poema nos vigia, rente ao murmúrio para que a alegria não retina e podem ver ao fundo, ali, um estábulo onde as palavras se abrigam, acolá, um bebedouro onde a memória bebe, os restos de feno, dois tipos que trabalham em pleno escuro e já visível a farma, a terra em uso. Estão aqui os instrumentos, os moldes da mania de que vos falei há bocado.
Voemos.
Voar não é senão essa ilusão,
fazê-la possível. Tê-la vivendo.
Voar é estender as mãos
a esse desejo que nos dói
como um punhal insurgente.

(p. 26)



Ocorre-me agora
a pupila minúscula de uma criança.
A sua engenharia
desde o corpo na guerreira pequenez
ao dedo provador da boca.
Ocorre-me esta criança
este monge da franqueza em seu templo de inocência.
Amo-a. Vivo-a.

Voar é poder amar uma criança.
Sonhar-lhe o peso no colo, as mãos acariciantes
sobre a palma da alma.

Voar é tardar a boca
na rosa do rosto de uma criança.
Pronunciar-lhe a ternura,
a seda fresca e pura
da sua infância.

Voar é adormecer o homem
na mão sonhadora
de uma criança.

(p. 28)



Por exemplo, o fogo.
O fogo estabelece o seu trabalho,
a sua centígrada destreza para arder.
E não sei se notaste
que na digital matriz das suas febres
o fogo opõe-se,
insubmisso,
a morrer.

Arde como se definitivo
e quando assim sucede tende a crescer,
busca aquela leveza das altas labaredas,
a implícita tontura das fagulhas.
O fogo arde como se quisesse fugir do chão,
das suas cavernas metalúrgicas,
ascende ao impulso dos foguetões,
à infância astral, à casa solar.

O fogo entristece, por vezes.
Chora inflamável na sua fatalidade terrestre
a estranha e lenhosa prisão
que o prende e embrutece.

Quer voar,
quer a sua ancestral condição de estrela
mas na corrida espacial com que o fogo queima,
na perpétua evasão,
a gula intestina-o
à sua pressa.

(p. 19)





*


POEMA DA PERGUNTAÇÃO

Não somos todos, os envergonhados, os verdadeiros culpados?
Não somos nós, os indignados, os verdadeiros carrascos?
O que antes e agora julgamos, não foi apenas uma pequena evidência? O que nós prendemos não foi a mão obscura de uma consciência? E mesmo o que matamos, não foi tão somente uma ínfima parte da verdade?
E procuramos grades? E procuramos muros altos e seguros? E procuramos homens obtusos para que os possamos vigiar? E procuramos armas para os tornarmos intransponíveis? De nada nos valerá, de nada nos adiantará. Não há ferro, nem betão, nem servilismo nenhum que nos possam salvar da luz da verdade.
Uma mentira não tem sempre sede de liberdade? Uma mentira não é a cela da verdade? E quantas vezes a pretendemos prender? E com quantas grades a desejamos ocultar? E com quantas mãos a ameaçamos estrangular?
Não vale a pena. Desistamos. Em nenhum maciço de betão podemos esconder o que a nossa consciência sabe. Em nenhuma anedota, em nenhum boato, em nenhuma suposição, em nenhuma imparcialidade e em nenhum juiz e em nenhum desmentido nos jornais e em nenhum país. Nem de nós, nem dos outros.



Eduardo White









“O que vocês não sabem e nem imaginam“

Vocês não sabem
Mas todas as manhãs me preparo
Para ser, de novo, aquele homem.
Arrumo as aflições, as carências,
As poucas alegrias do que ainda sou capaz de rir,
O vinagre para as mágoas
E o cansaço que usarei
Mais para o fim da tarde.

À hora do costume,
Estou no meu respeitoso emprego:
O de Secretário de Informação e de Relações Públicas.
Aturo pacientemente os colegas,
Felizes em seus ostentosos cargos,
Em suas mesas repletas de ofícios,
Os ares importantes dos chefes
Meticulosamente empacotados em seus fatos,
A lenta e indiferente preguiça do tempo.

Todas as manhãs tudo se repete.
O poeta Eduardo White se despede de mim
À porta de casa,
Agradece-me o esforço que é mantê-lo
Alimentado, vestido e bebido
(ele sem mover palha)
Me lembra o pão que devo trazer,
Os rebuçados para prender o Sandro,
O sorriso luzidio e feliz para a Olga,
E alguma disposição da que me reste
Para os amigos que, mais logo,
Possam eventualmente aparecer.

Depois, ao fim da tarde,
Já com as obrigações cumpridas,
Rumo a casa.
À porta me esperam
A mulher, o filho e o poeta.
A todos cumprimentos de igual modo.
Um largo sorriso no rosto,
Um expresso cansaço nos olhos,
Para que de mim se apiedem
E se esmerem no respeito,
E aquele costumeiro morro de fome.

Então à mesa, religiosamente comemos os quatro
O jantar de três
(que o poeta inconsta
Na ficha do agregado).

Fingidamente satisfeito ensaio
Um largo bocejo
E do homem me dispo.
Chamo pela Olga para que o pendure,
Junto ao resto da roupa,
Com aquele jeito que só ela tem
De o encabidar sem o amarrotar.

O poeta, visto-o depois
E é com ele que amo
Escrevo versos
E faço filhos


Eduardo White

País de mim

42.
O peso da vida!
Gostava de senti-lo à tua maneira
e ouvi-la crescer dentro de mim,
em carne viva,

não queria somente
rasgar-te a ferida,
não queria apenas esta vocação paciente
do lavrador,
mas, também, a da terra
e que é a tua


Assume o amor como um ofício
onde tens que te esmerar,

repete-o até à perfeição,
repete-o quantas vezes for preciso
até dentro dele tudo durar
e ter sentido

Deixa nele crescer o sol
até tarde,
deixa-o ser a asa da imaginação,
a casa da concórdia,

só nunca deixes que sobre
para não ser memória.



Eduardo White







PROSA POÉTICA

PROSA POÉTICA

Não existe na designação Prosa poética contradição de termos, ao contrário do que possa supor. Com efeito, discurso em prosa (prorsa oratio, “Discurso que avança”) opõe-se a discurso em verso (“discurso que avança e retrocede”), e não a poesia. Prosa e verso são dois princípios de segmentação do discurso (há outros, como a lista, em que a linearidade é substituída pela sequencialidade vertical, ou como a constelação da Poesia Concreta). Não se pode de qualquer modo esquecer que primeira forma de expressão literária é o discurso metrificado. Só relativamente tarde surge a prosa, em escritos filosóficos e, depois, no romance helenístico. Aqui o princípio da referencialidade narrativa sobrepõe-se pela primeira vez ao princípio rítmico na elaboração do discurso literário.
Curtius e Ribémont referem o facto de na Idade-Média verso e prosa alternarem com facilidade e frequência, havendo inclusivamente um exercício de escola que consistira em transformar o discurso metrificado em prosa livre. O contrário, a versificação do discurso em prosa, também não era coisa rara. Acima da cisão (discurso em) verso (discurso em) prosa estava a regência dos princípios gerais da Retórica, que impunham á prosa de estilo a clausula ritmada, isto é, a conclusão do período operada dentro de certas regras de vocalismo e de acentuação. Em latim tardio, assim como em vernáculo medieval, a clausula foi reduzida ao cursus (planus, tardus, velox), três tipos de acentuação rítmica finalizante. E se é facto que estas regras se perderam, a verdade é que todo o bom prosador narrativo encontra intuitivamente um ritmo adequado para os seus fechos de período.
Com a Renascença floresce enfim a prosa narrativa livre de imposições rítmicas rígidas, de acordo com o espírito humanizante da época, avesso aos requintes, requebros e enigmas discursivos que colocavam p. ex., os romances de Chrétien de Troyes. Boccaccio, Margarida de Navarra, Thomas Morus, Erasmo são alguns exemplos. Esta prosa narrativa, embora usasse o ritmo como fonte de elegância ilocutória, apresentava unidades mínimas discursivas, isto é, frases, regidas primariamente pelo princípio gramatical. O verso continua então a constituir-se como a unidade mínima dum discurso regido primariamente pelo princípio rítmico. A Prosa poética virá representar um compromisso na importância relativa dos dois elementos formantes do discurso: o semântico e o formal. O que a caracteriza é a manutenção, ainda que por vezes à espera de ser desocultada, do princípio rítmico, em detrimento do semântico narrativo. Sendo assim, a função referencial da narração perde em importância no caso da Prosa Poética: “It seems obvious that an increasing number of books advertising themselves as novels refuse to tell tales” (Hayman, cit.). Poderia dizer-se também assim: “refuse to bes read as tales”. Ou seja, como discurso que avança, discurso tendente a um desfecho, a um fim. Tudo isto se exemplifica p. ex., em Beckett: “The reader of Molloy waits not for somethings to happen so much as for something to be said, something taht can pass for an event on the page” (Hayman, cit.).
Mas nem é preciso mobilizar Beckett, ou Joyce, ou os poetas do Oulipo: “Même lorsqu’íl accorde une importance capitale au sens du message qu’il entend délivrer (C’est-à-dire à ce qu’il y a de comum entre le texte et une traduction), l’écrivain ne peut pas ne pas être sensible aux structures qu’il emploie et ce nést pas au hassard quíl adopte une forme au lieu d’une autre”. O começo da descrição da serra, na chegada dos amigos de Paris, n’A cidade e as Serras, é dado no enunciado seguinte: “A grandeza igualava a graça”, o que pode ritmicamente reduzir-se à equação (gr=gr). Estamos perante a realização duma das exigências da Prosa poética, realização pontual numa obra de prosa narrativa: a motivação rítmica.
Não esqueçamos no entanto que já Aristóteles se referia a livros científicos em discurso matrificado, não os considerando poesia. Ao discurso pertence, além do ritmo que o fundamenta exteriormente, a imagética que decorre da revelação subjectiva e instaura um enigma semântico e semiótico, decorrente duma “necessidade interna”, não semanticamente mediada. “Desvinculadas da sua racionalidade utilitária, as coisas do mundo - até as mais insignificantes ou primitivas - têm a possibilidade de se mostrarem belas pela “Necessidade Interna” (Rosenfield, cit.). Qualquer tema serve com efeito à Prosa poética (não há temas em si poéticos ou não ), contento que perca as arestas objectivas e utilitárias, uma das quais é a que pode chamar-se “ética da narrativa”, ou seja, o caminho em direcção a um fim exemplar. A Prosa poética leva assim não tanto à fruição semântica, como á fruição das unidades semióticas e, especificamente, de pronúncia, com marcação de pausas e atenção especial á articulação, á entoação e à criação de melodia. pode haver mesmo interferência na coerência lógico-semântica, bem como na fonologia e sintaxe (Joyce), ou apenas discretas manifestações em puros inserts ( caso citado de Eça de Queirós). O limite é o do “self-generating text”, que de certo modo inverte a função mimétoica do discurso, começando por apresentar-se como puro processo e tornando-se, pouco a pouco, substância gerada pela estrutura verbal, num apelo sobretudo à função sugestiva.
Se a linguagem quer dizer (tem função semântica) e, ao mesmo tempo, é (é uma organização com concretude própria), então estas duas funções vão até à latência da segunda no discurso narrativo pragmático, e podem ir até à quase latência na Prosa poética. O conceito remete para o Romantismo, com a sua desagregação dos géneros, e assunção do fragmentário e do misto. Mesmo assim, no Table Talk, Coleridge é ainda rígido na diferença que estabelece entre prosa e poesia, e vai mesmo ao ponto de afirmar que na prosa as palavras só devem significar e nada mais. Interessante, pela sobreposição (afinal mimética) do princípio da verosimilhança estilística ao dogma canónico do género, é a reflexão que Almeida Garrett faz no prólogo ao Frei Luís de Sousa, onde fundamenta a sua decisão pela prosa. Wolfgang Kayser dá o exemplo acabado da correcção do discurso com intenção poetizante: “do bramido do mar e do rugido das ventanias “ vs. “ do bramido do mar e do rugido dos ventos”, primeira versão e versão definitiva dum passo de Eurico de Alexandre Herculano: “A substituição de ventanias por ventos cria dois grupos de palavras absolutamente iguais. São duas redondilhas copuladas, que se correspondem ritmicamente até nos pormenores mais pequenos, e nas quais a rima exterior e a interior tornam completa a simetria. Aqui não pode calcular-se que quaisquer impulsos partiram do semântico; aqui, evidentemente, a ênfase rítmica actuou como motivo da modificação.”
Em casos em que, como neste, impera a simetria rítmica, a Prosa poética é fácil de reconhecer. Se no entanto o critério é interno, então pode pôr-se ainda a questão Prosa poética vs Verso livre. A fronteira está nesse caso na visilegibilidade do texto, e isso poderá corresponder à intenção a que S. J. Schmidt chama “intenção de efeito”, em oposição à “intenção de comunicação”. A fala da loucura de Lear (Ay, every inch a king” King Lear, IV, 6) surge nalgumas edições em prosa, e não no canónico verso livre. A opção por uma prosa em si claramente poética representa no entanto neste caso a desintegração da visilegibilidade da poesia. Neste sentido, a Prosa poética é prosodicamente sempre prosa.


vide: Carlos Ceia

Lição n.º 67

Eduardo White: a prosa poética.
Pesquisa de textos on-line.
Fórum de leitores.

18.3.12

Malangatana
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEirUw3mOI9Psb3LMFOtDVtkvK9QNQgtBlv33-Kpb-bUKl1vNLeM3GSnaOnuv7BGFXwhyphenhyphentpy4uAW0K7_-E9udQEHtI6PgcBmqt1IKbIUAB5C4DRH9TveKpIWqOF9pIGpaaB6KmTfwQW3Z3A/s640/malangatana.jpg

TÓPICOS DE ESTUDO

Eduardo White, Janela para Oriente, Lisboa, Caminho, 1999
 
ritmo e movimento/recorrência/mutação/transposição; 
lógica e analogias da escrita/fala, de palavras/ideias 
Fronteira entre prosa poética/poesia em prosa;

Eduardo White

                                           E D U A R D O   W H I T E


 

 















 
Escritor moçambicano, Eduardo Costley White nasceu em Quelimane (Moçambique), a 21 de Novembro de 1963. 
O poeta integrou um grupo literário que fundou, em 1984, a Revista Charrua. Junto a outros poetas, colaborou também com a Gazeta de Letras e Artes da Revista Tempo, publicação cuja importância, assim como Charrua, foi indiscutível para o desenvolvimento da literatura moçambicana. Por intermédio desses periódicos, afirmou-se um fazer poético intimista, caracterizado pela preocupação existencial e universalizante. 
Charrua não compreendeu publicações ligadas a qualquer movimento literário. A pluralidade de suas idéias a impedia desse comprometimento restrito: “publicávamos desde o Pessoa até ao Aimé Césaire”. Seu vínculo mantinha-se somente com “um grupo de jovens que queria mostrar o seu trabalho”.
pelo nome a Revista sugeria “uma geração de contestatários” empenhados em confeccionar um veículo literário caracterizado pelas rupturas. Ao desfiar suas lembranças, White reavaliou os intentos dos escritores envolvidos nessa iniciativa: “o que pretendíamos não era bem destruir, mas [...] mexer a literatura estatal [...], desaplaudi-la, criticá-la, mas propondo coisas nossas [...], coisas novas, coisas que nós achávamos naquela altura [...]. Nós como escritores vivíamos num país onde a literatura medíocre era aplaudida: todos os dias via-se no jornal a promoção à literatura do chavão, do viva, [...] da bajulação. E então nós propusemos: vamos escangalhar isso, trazer coisas provocar momentos em que possa vir até nós literatura boa” (WHITE, in: LABAN, 1998, p. 1204-1205 apud Na ponta da pena: Moçambique em letras e cores, Cíntia Machado de Campos Almeida, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006 <www.letras.ufrj.br/posverna/mestrado/AlmeidaCMC.pdf>) 
Apresenta colaboração em imprensa lusófona e é autor dos seguintes livros: 
1984 - Amar Sobre o Índico, Associação dos Escritores Moçambicanos;
1987 - Homoíne,
Associação dos Escritores Moçambicanos;
1989 – O País de Mim,
Associação dos Escritores Moçambicanos (Prémio Gazeta de Artes e Letras da Revista Tempo);
1992 - Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave, Editorial Caminho (Prémio Nacional de Poesia Moçambicana, 1995);
1996 - Os Materiais de Amor seguido de Desafio à Tristeza, Maputo, Ndjira / Lisboa,  Ed. Caminho:
1999 - Janela para Oriente, Ed. Caminho;
2001 - Dormir Com Deus e Um Navio na Língua, Braga, Ed. Labirinto, (bilingue português/inglês; Prémio Consagração Rui de Noronha);
2002 - As Falas do Escorpião, (novela) Maputo, Imprensa Universitária;
2004 – O Manual das Mãos, Campo das Letras
2004 - O Homem a Sombra e a Flor e Algumas Cartas do Interior, Maputo, Imprensa Universitária;
2005 - Até Amanhã, Coração, Maputo, Vertical.
 A sua poesia está exposta no museu Val-du-Marne em Paris desde 1989. Em 2001 foi considerado em Moçambique a figura literária do ano e em 2004 recebe o Prémio José Craveirinha, atribuído pela Associação de Escritores Moçambicanos.
  
Numa preocupação com as origens, Eduardo White tenta na sua poesia reflectir sobre a sua história e sobre Moçambique, numa tentativa de apagar as marcas da guerra e de dignificar a vida humana. Para isso, escreve através de um amor diversificado que pode ser pela amada, pela terra ou mesmo pela própria poesia, sempre num tom de ternura, de onirismo, de musicalidade e, por vezes, de erotismo. (“Eduardo White” in Infopédia. Porto: Porto Editora, 2003-2008 <URL: http://www.infopedia.pt/$eduardo-white>) 
Moderníssimo, kafkiano, os seus textos apontam para uma leitura poética metalinguística, ou seja, em que os poemas, ao engendrarem a si mesmos, contam, paralelamente, a história de seu povo (amores, sofrimentos, opressões, miséria, estigmas das guerras, etc.) e a história da própria linguagem literária. (Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante , 2005 <URL: http://www.guesaerrante.com.br/2005/11/29/Pagina125.htm> 
Empenhado em cantar o Amor, a fim de que a paz se consolidasse nos âmagos individual e nacional, White desenvolveu uma escrita poética que almejou erotizar uma terra acometida pelas degradantes conseqüências de sucessivas guerras. Exaltando a vida e tudo o que dela pulsasse, o poeta exibiu um eu-lírico marcadamente otimista, embora, muitas vezes, melancólico e indignado. […]
Os versos de Eduardo White ultrapassaram o raio de visão do senso comum. Sem perder de vista os escombros, os cadáveres, os mutilados e a miséria, a poética do autor se propôs apontar caminhos e motivações para alcançar uma estabilização social. Nesse sentido, aprendemos com White que Amor e Poesia não significam instituições alienadas ou alienantes, visto que a própria mensagem poética, em O país de mim, nos tenha advertido: “ao amor não ponhas vendas, nunca, nem sequer aos poemas” (WHITE, 1989, p. 20).
“Como explicar que um jovem escritor dê tanta importância ao tema lírico [do amor] num país tão marcado pela violência?” – questionou Michel Laban numa entrevista que integra o livro Moçambique: encontro com escritores. White justificou a seleção de seu material poético, grifando o canto subjetivo como um discurso de resistência e persistência da memória: “Antes de mais nada gostaria de ressaltar que a temática que eu usei nos dois livros11 é acima de tudo uma temática de protesto e também de relembrança. A minha geração é uma geração de guerra: da guerra colonial [...] e agora e sempre a guerra com a Renamo. O que eu procurei é levar ao leitor uma relembrança do que afinal está em nós ainda vivo, do que a gente acredita como sendo possível, como sendo real, que é o amor.” (WHITE, in: LABAN, 1998, p. 1179 apud ALMEIDA, 2006 <www.letras.ufrj.br/posverna/mestrado/AlmeidaCMC.pdf>).
  
Em Amar sobre o Índico, depreendemos um fazer poético obstinado em anunciar a transformação, desnudando o Amor, a fim de apresentá-lo a Moçambique e aos moçambicanos, tornando-o, assim, uma instância confiável tanto à reforma subjetiva quanto à daquela sociedade. Esse livro mostrou-se motivado a enxergar para além da tristeza instaurada em plena guerra civil, alcançando uma paisagem vitalizada, repleta de seres humanos que acreditassem uns nos outros, bem como no princípio amoroso. Paisagem, homem e poesia constituíram um eixo triangular percorrido pelo ânimo positivo desse poema. Reverter o alastramento de Tânatos não compreendeu uma tarefa restrita ao exercício literário. […]
Além de nutrir a paz e promover a desalienação, em O país de mim e Os materiais do amor seguido de O desafio à tristeza, o Amor se revelou elucidativo e, portanto, uma fonte de conhecimento, capaz de promover o despontar da reflexão, proporcionando ao sujeito a abrangência de outras “verdades”.
Percebemos que White desejou operar com o Amor bifurcadamente, almejando que esse estado de alma atuasse na reconstituição da esfera individual fragmentada pelas guerras colonial e civil, com a mesma intensidade com que tendesse ao bem coletivo, ou seja, à estabilização social. (ALMEIDA, 2006 <www.letras.ufrj.br/posverna/mestrado/AlmeidaCMC.pdf>)


ENTRE MAR E CÉU

 

Eduardo White […] em Os Materiais do Amor (1996: 23) metaforiza o amor com as paisagens do mar: “Minha taça secreta, meu cio e minha sedução que pangaios tens nos lábios, com colares e especiarias, que possam levar-me inenarrável, aos mares que emprestas a estas mãos”, e em Janela para Oriente (1999), explora de um outro modo, não a “Indicidade”, mas o “orientalismo”, que corrobora da noção anterior, da lírica moçambicana, convocando-lhe uma re-orientação de imaginários, circum-navegados, na demanda da tão especial “especiaria” que conflui, hibridizada, na cultura moçambicana, em especial, no litoral e no norte. […]
Digamos que as águas e as aves, as asas e as índicas monções, percorrem e habitam o imaginário e as imagens elementais dos poemas nas obras de um grupo significativo de escritores moçambicanos. O ar na sua arquitectura de surpreendentes vôos é “teorizado” num importante livro, que considero fundamental para o desenvolvimento da actual poesia moçambicana: trata-se da obra Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave da autoria, também de Eduardo White, publicado em 1992.
Eduardo White, estreado em 1984 com Amar sobre o Índico, publicou posteriormente, O País de Mim(1989), uma provocatória resposta ao País dos Outros de Rui Knopfli, restabelecendo, tal como Patraquim, o fio condutor de uma tradição poética, através da recriação de um tema, o do país/nação, assumido e interiorizado na lírica, enquanto sujeito que se afirma pela posse erótica da terra, “nacionalizando-a” pelos sentidos, pelo amor e pela paixão.
Este gesto de apropriação do legado literário anterior é um traço característico da poesia moçambicana, como já referimos, que tende a estabelecer redes de referências através de títulos, epígrafes, dedicatórias, citações de versos, criando deste modo um diálogo, em teia ressoante, malha de ecos que se respondem ou interrogam numa tessitura complexa. Assim, encontramos o discurso nativista articulado harmonicamente com o cosmopolita; a poesia moçambicana revela-se como esse tronco-tótem, de que fala o poema Manifesto de José Craveirinha, que se institui em teluricidade maior, radicado no chão da cicatriz colonial, mas que expande, igualmente, a ramagem e adventícias raízes líquidas a demandar aéreos e remotos horizontes. 
“Quando hoje fôr noite podes levar o lume na cintura e a boca a piar. Estende o rosto sobre as estrelas e na cabeça uma constelação sirva de diadema” (PCV, p. 23) 
Esta demanda de um espaço simbólico múltiplo, e culturalmente significante, adequado à diversidade cultural e à especificidade da nação moçambicana, explica-se neste percurso de uma itinerância elemental, em que a viagem do eu lírico, ora se expande pelo mar e seus orientes, ora pelo ar, como é o caso do livro Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de ser Ave de Eduardo White.
O livro abalança-se a vôos de predigitação afirmando, na década de 90, a liberdade maior da poética moçambicana e, simultaneamente, desenvolve uma reflexão sobre os elementos TerralAr, nas suas diversas simbologias, entre as quais a expansão do sonho, da imaginação. Lemos no início do poema de Eduardo White
“No vento e sem milagres sobem as aves pelo ar. Nenhum fogo as suspende. Só o sangue e movimento. Matéria carnal. A casa solar.
É bom o tempo. Deixaram a terra, o raso sabor do chão. Voam e outra engenharia as movera.[...] Tanta amargura que sonhar nos mantém vivos. Eu desejo os pássaros por essa razão, a droga da alegria que os eleva e os suspende, e o que é sonhar senão isso?” (PCV, p. 13) 
As aves, consideradas a personificação do ar, têm a leveza de todas as imagens aéreas que simbolizam, essencialmente, a desmaterialização e a libertação da alma, o sonho e o espírito, transcendência da condição humana, viagem onírica do voo. Enquanto mediadoras entre terra e céu, as aves e o simbolismo das suas asas, que se aliam ao levantar do voo, permitem também, pela vertigem da ascensão, a experiência do sublime: 
“Para onde vamos com tanto vagar, entre estrelas, a luz e o vento? É tão remoto o chão, tão sem memória. (p. 13) Quero esta humilde e real ilusão esta redonda janela intemporal onde o peso se supende, flutua. (p. 17) Uma mão relampeja na casa da escrita. Faísca. Troveja. Procuro um claro instante para a aparição. (PCV, p. 17)
Sucede que tenho para mim a paixão dessa ciência as mecânicas seduções dessa engenharia. Na verdade julgo voar. Ergo a cabeça, os olhos chamejantes, toco a longuíssima garganta do espaço.[...] dá-me a vertiginosa tontura dos cometas, a loucura brilhante das suas cabeças / dá-me aquela secreta mão de Deus / que turbilhante e clandestina os combustiona e acende” (PCV, p. 20). 
Estas imagens da poesia de White que incidem sobre a ascensão, voo e nuvens, reclamam outra oficina de escrita e inscrevem, encenam, a projecção desejada de uma “pátria aérea”, uma pátria-poética, livre. Gaston Bachelard (1978: 93) explica-nos que: “A asa, símbolo de dinamismo, sobrepõe-se aqui ao símbolo da espiritualização; amarrada ao pé não implica necessariamente uma ideia de sublimação, mas sim de libertação das nossas forças criadoras mais importantes: o poeta, assim como o profeta, tem asas quando está inspirado”. 
“Há-de viver este transe, este desejo irrevogável do meu poeta. Há-de ter no inundo a humilde ambição das suas asas, volatilizar distâncias. Há-de suar aqueles lácteos clarões dos sobressaltos, escolher luas, debulhar os sóis há-de arder de febre na sua demência e na sacrálica ilusão do seu universo / eu sei que terá por certeza / por fim / ou por delírio / somente a fértil e mágica natureza / de algum bom verso” (PCV, p. 21) 
Voo criador, alcance do instante da criação, propõem os versos de White ao refazerem um percurso ascensional que, segundo Mircea Eliade (1989: 103) “no plano ritual, do êxtase [...] é susceptível de, entre outras coisas, abolir o tempo e o espaço e de “projectar” o homem no instante mítico de criação do mundo; por conseguinte, de o fazer, de alguma forma, ‘nascer de novo’, tornando-o, contemporâneo do nascimento do mundo.” Este nascimento, na formulação poética de White, é de um espaço outro, pátria poética, casa aérea, expansão sem fim: 
“Atravesso as nuvens, as formas transparentes, a navegável natureza da lã celeste e posso ver um pássaro que passa perto e acenar-lhe com versos. Bom dia, como está? [...] peço licença à poesia, quero-as voando em meus versos e também um mar e dois ou três navios que se achem por perto / e mesmo que desmereça toda a beleza disso / deixai que escreva pois a vontade prevalece e queima.” (PCV, p. 12) 
Centremo-nos, agora, na imagem das nuvens, considerada um meio de transporte para o sonho aéreo, diz ainda sobre elas Bachelard (1978: 219): “o devaneio normal segue a nuvem como uma elevação substancial que culmina na mais alta sublimação, numa dissolução no zénite do céu azul [...]”. As nuvens são consideradas, de entre as imagens aéreas, as mais oníricas e fazem do poeta um sonhador, simultaneamente mestre da temporalidade e da criação.
Na poesia de White, esta gestação de uma “imaginada/inventada” “pátria aérea-poética”, que se “desterritorializa” da terra, para se alimentar da expansividade do céu, estabelece também uma espécie de compensação, relativamente à situação vivida em terra. Com efeito, a época deste livro é a da guerra civil, em que o país se povoava de conflitos desagregadores. A simbolização das nuvens propõe um movimento fraterno e pacífico, evidenciando a aspiração e projecção do sonho, numa espécie de pátria possível entre mar e céu, lugar em que homens e culturas convivem harmoniosamente. Lugar ainda, em que a escrita recria o ser, enquanto sujeito livre de qualquer sujeição telúrica, e o expande em dádiva iluminada, num ilimitado território, nação poética, pátria em voo e navegação.
Nas palavras de Francisco Noa (1998:46), nesta “relação voo / sonho / poesia / navegação / liberdade há uma encenação de embriaguês, um desregramento dionísiaco dos sentidos que conduz o sujeito (e o leitor) para um universo, virtual, onde é possível pessoanamente “experimentar tudo de todas as maneiras”. E a dimensão metapoética que se reconhece em toda esta poesia torna-se uma vasta metáfora da própria literatura que exprime uma maturidade e uma modernidade incontornáveis.” 
“Não faz mal. / Voar é uma dádiva da poesia./ Um verso arde na brancura aérea do papel, / Toma balanço / Não resiste, / Solta-se-lhe / O animal alado./ Voa sobre as casas, / Sobre as ruas, / Sobre os homens que passam, / Procura um pássaro / Para acasalar. / Sílaba a sílaba/ O verso voa.” (PCV, p. 22) 
Ana Mafalda Leite, “Poéticas do Imaginário Elemental na Poesia Moçambicana: entre mar… e céu”
in Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais, Lisboa, Edições Colibri, 2003, pp. 156-160.


 
Tenho uma janela amarela virada para Oriente. Docemente e sem assombro. Todos os dias me sento defronte dela para a olhar. E o vento que a bate faz-me um incêndio para escrever, desce devagar a rampa por onde a vou saltar. Minha e sem fim esta natureza fresca dos seus vidros, a luz que por ela é uma magia tão puríssima. Tenho a janela num quarto que amo, unido como o sangue verde do vale que dela eu vejo, dos livros fechados em seus destinos, dos jornais aos montes e sem notícias. O ar deste quarto está de sorrisos e de surpresas, de desgostos que irão viver, cheio de lugares que ainda não sou. Oiço músicas dentro dele, caladas e brancas de repente, oiço cores incessantes e um poeta que pressinto esteja a morrer. Leio as palavras que o são. Frias. Concretas. Óbvias e desertas. E a morte é um murmúrio por detrás de tudo o que gritam sem dizer. Um sibilar envenenado e arrepiante, um voar rasante e precipitante. A morte desenha-lhe as mãos que daqui posso ver a tremerem. E, por isso, fica o quarto mais cinzento, mais frio, severo como a pedra num deus. (pp.13-14)
[…] 
Levanto-me.
Vou supor-me a resistir. Lentamente até fugir. 
Descubro corridas as cortinas das janelas deste quarto virado para Oriente. Afasto-as, e os olhos navegam pelos telhados das casas lá em baixo. São inúmeras e quadradas. Unidas como se quisessem cuidados umas das outras. Talvez por dentro nem transpirem assim tanta solidariedade. Mas eu penso nas presenças que as tornam vivas e humanas, nas conversas que esconderão, nas crianças debruçadas para o beijo ou para a música, as refeições acesas pelos fogões. Afinal, hoje é domingo e toda a gente é um horizonte de si. Estão felizes com certeza, e se não estão tentam, por decerto terem pouco do que rir noutros dias. O domingo é quase tétrico de nos vermos tão nitidamente. É, no fundo, como a morte onde se prevê aquele poeta. (pp.15-16)
[…] 
Ai, meu grande e belo Médio Oriente de onde vejo África das suas janelas e oiço rugir uma fera nas savanas de Moçambique. Ali que é para onde devo ir. 
Definitivamente regressar. 
Nada nos é belo se for demasiadamente claro. Nada interessará. 
Portanto, arrumo, aqui, as ferramentas deste trabalho, desta paixão que tenho pelas visões que encerro, pelo motor que as leva à minuciosa observação dos espaços. E ainda assim sinto que me pesa tanto inconhecimento, tanta denotada fragilidade. Eu nada sabia desta remota possibilidade, deste lírico fervor que guardo pela imaginação. Gostaria imenso de falar-me disto, destas alegrias pacientes de que sou um exímio fazedor. Como sucedo que olho para o que a pensar direi melhor. (pp.77-78)


Eduardo White, em Janela para Oriente, apresenta um discurso metaliterário, de modo que, logo no início do livro, o poeta declara que o motor da sua inspiração, aquilo que provoca “um incêndio para escrever”, é a ideia de Oriente (o vento que bate).
Depois, o sujeito poético centra a sua atenção sobre si próprio e diz ouvir-se como poeta a morrer, isto é, a atingir um estado-limite da consciência (“oiço […] um poeta que pressinto esteja a morrer”). White sugere, então, dois estados de consciência, já que o sujeito escrevente é aquele que toma consciência do sujeito oculto: “Leio as palavras que o são […]. E a morte é um murmúrio por detrás de tudo o que gritam sem dizer”. Assim, o sujeito poético assume-se como aquele que numa espécie de transe (veja-se a atenção que dá ao valor estupefaciente do cigarro e do álcool ao longo do livro) comunica e dá voz a esse eu interior.
No final do livro, o poeta reafirma-se como “exímio fazedor” de um “lírico fervor que” guarda “pela imaginação”. Eis então especificados os elementos necessários para a escrita literária: “ferramentas deste trabalho”, “paixão”, “visões que encerro”, “minuciosa observação dos espaços”.
A escrita é, portanto, para White, uma tomada de consciência: “Eu nada sabia desta remota possibilidade, deste lírico fervor que guardo pela imaginação”. (José M. A. Carreiro, Março de 2008)
Fonte: Lusofonianosapo.pt